" dançá mais eu" é a ressignificação de um verso, de um corrido do universo da capoeiragem que diz: "vem jogá mais eu mano meu."...Eu que venho transitando entre territórios de tradição, renovação e constante invenção como a Capoeira Angola e a Dança, busco aqui compartilhar ideias e ações que encontram nexos e elos no fazer, seja enquanto docente, criadora, pesquisadora e aprendiz que sou...

PESQUISA E AFINS...

A confecção desse artigo aconteceu ainda durante meu mestrado em um processo de trocas e construção de uma verdadeira parceria. Eu, discutindo o universo da Capoeira Angola e Cintia, também pesquisadora, professora e dançarina, discutindo seu universo de pesquisa, o Samba de Roda.

SAMBA NO JOGO E GINGA NA RODA por Cintia Paula Lopez e Gabriela Santos Cavalcante Santana.

[Artigo submetido ao V congresso do ABRACE - Associação Brasileira
de Artes Cênicas (2008)].

Resumo

Neste ensaio investigamos semânticas emergentes nos códigos presentes na Roda de Capoeira e no Samba de Roda. Compreendendo, todavia, que as cidades onde estamos analisando o Samba de Roda e a Roda de Capoeira, respectivamente Ilha de Itaparica e Salvador, apresentam códigos culturais locais que são incorporados e dialogados nestas práticas, investigamos como estas manifestações re-significam tais códigos em metáforas, simbologias, gestos e movimentos. Utilizamos como instrumental teórico, alguns pressupostos da Semiótica da Cultura capazes de auxiliar no entendimento da dinâmica e re-novação da cultura. A análise sobre a perspectiva artística presente nestas linguagens, visa contribuir para pesquisas em dança que tem como mote central estas duas manifestações.

Samba no Jogo e Ginga na Roda

A Capoeira e o Samba de Roda são eventos populares de marca histórica na cultura baiana e brasileira, entretanto percebe-se que apesar da aplicação destas manifestações em práticas artísticas já serem recorrentes, só recentemente vem sendo objeto de investigações de cunho acadêmico. Dessa forma, procuramos compreender como os códigos culturais presentes nestes dois universos, encontram-se imbricados com a cultura local das cidades em que estão inseridas para este estudo, Salvador e Ilha de Itaparica, visando com isso contribuir para o pensamento em dança que interessa-se por processos de preparação e de criação, que tem como mote o samba de roda e a capoeira.

No sentido de identificar os pontos de conexão entre dois universos com códigos particulares, como a capoeira e o samba de roda, propomos este artigo como espaço de reflexão para análise a partir da articulação de alguns conceitos propostos pelo semioticista russo Iuri Lotman, especialmente formulados para a análise das dinâmicas da cultura.

No entendimento proposto por LOTMAN (1996) a cultura é considerada como uma inteligência e memória coletiva, sendo o espaço da cultura o ambiente onde se estabelecem relações de trocas e significação coletivas de um grupo dado.
Entendendo o Samba de Roda e a Capoeira enquanto práticas culturais que não somente absorvem códigos, mas também interferem e trocam com a cultura local, estaremos refletindo sobre as metáforas demonstradas nos códigos estabelecidos dentro de cada um desses eventos, e que podem ser indicadas como textos e subtextos dentro da semiosfera, compreendida como o universo onde se estabelecem os códigos culturais, ou seja, considerando a cultura local da cidade de Salvador e região como ambiente para as dinâmicas desses dois universos.

Segundo Lotman o conceito de texto, inicialmente destacava sua “naturaleza unitária de señal” LOTMAN (1996, p.78), a partir do que ele indica como sendo uma brecha na idéia de que texto seria “un enunciado en un lenguage qualquiera”, o autor propõe que para que uma mensagem possa ser definida como texto, a mesma deve estar codificada, pelo menos duas vezes.

Assim trataremos O Samba de Roda e Capoeira como textos, à medida que essas configurações apresentam múltiplas possibilidades de significações e desdobramentos. O Samba de Roda varia seu sentido e organização interna e externa a depender do contexto em que se apresenta; a exemplo da discrepante diferença evidenciada nos sambas realizados sob o compromisso de apresentações públicas, no formato de grupo de apresentação e os sambas realizados dentro de cultos religiosos de candomblé. Da mesma forma as rodas de Capoeira que se organizam para apresentação e difusão da prática e que se diferem das rodas realizadas dentro dos espaços internos e/ou comunitários, onde o objetivo é o de comunhão, caracterizando semânticas distintas para o mesmo texto, ou seja, a capoeira.

De início podemos indicar em comum nos eventos de Samba de Roda e de Capoeira o estabelecimento de hierarquias de funções dos participantes dentro da roda, como forma de organização representativa de modelos presentes em estruturas organizacionais da cultura local. Essa lógica hierárquica pode ser observada nas relações de valorização dos mais velhos, prática notória nas relações sociais e familiares de Salvador e região. Ao considerar hierarquia, como uma mensagem que se repete para fora desses eventos, podemos apontar para as relações estabelecidas em espaços como as casas de candomblé, onde calcadas sobre lógicas estabelecidas a partir da oralidade, remontam o universo mítico, caracterizado como referência máxima nesse ambiente.

Nas dinâmicas corporais dos sambas de roda vinculados a cultos religiosos de candomblé, a hierarquia pode ser facilmente identificada a partir da ordem ditada pela entidade cultuada em cada evento, sendo dela a responsabilidade e autoridade maior dentro da roda, é a entidade quem diz quem vai para o centro da roda dançar e com quem se dança. Geralmente as mulheres e os mais velhos da casa são os primeiros a serem convidados ao centro da roda, fator responsável pela replicação da mensagem ou texto.

A ocupação pelos participantes no espaço da roda de samba é dessa forma feita de regras e convenções estabelecidas pelos participantes, que constroem uma coerência interna entre o lugar de destaque dos mais velhos e o papel que o mesmos possuem para aquela comunidade.
Assim como na roda de samba, a roda de capoeira é delineada materialmente com a ocupação do mestre em lugar de destaque que por isso, é quem segura o berimbau Gunga. A expressão conhecida: “O gunga é quem comanda a roda”, é evidenciada por todos aqueles que fazem parte deste universo. Como ensinamento, o discípulo segue a instrução de que nem um outro instrumento deve sobrepor o som emitido por este berimbau.

Essas relações hierárquicas na capoeira são ainda materializadas em gestos realizados pelos jogadores que pedem benção e proteção ao gunga, e ainda, no oferecimento ou citação na ladainha que inicia a roda, onde os versos iniciais são referidos aos antigos mestres, expressando admiração por aqueles que transmitiram valores e ensinamentos diretos ou indiretamente aos que estão presentes naquele evento. Dessa forma, o reconhecimento dos mestres, de suas façanhas e feitos históricos são reforçados e expressados como admiração por aqueles que fizeram parte do desenvolvimento da capoeira.

Nesses textos podemos então notar que a mensagem de hierarquia é comunicada e renovada através da oralidade, seja ela verbal ou tácita, sendo esses dois aspectos, hierarquia e oralidade, códigos que possuem uma mensagem, uma informação capaz de ser materializada através de dinâmicas semelhantes ou diferentes.

A ZECA e ABERRÊ eu devo muito de capoeira. Tudo que venho transmitindo de geração prá geração. Não tenho português. Não sou formado em filosofia. Nada disso né? A minha leitura é muito fraca. O que eu sei de folclore é transmitido prá muita gente. Prá muito intelectual. Pra muito escritor. Ta entendendo? ( Mestre Canjiquinha).

Estes códigos, hierarquia e oralidade, presentes tanto na semiosfera de Salvador e adjacências, no Samba de Roda, e na Capoeira, exemplificados acima com a extração do depoimento de Mestre Canjiquinha e transcrito no livro: Canjiquinha: Alegria da Capoeira, apresentam-se como alguns dos vários construtores da memória que segundo Lotman, serve como mecanismo da conservação e da renovação dos textos, que em diálogo com outros textos configuram dinâmicas da cultura local.

Nesse aspecto, identificamos na oralidade, presente no Samba de Roda e na roda de Capoeira, um exemplo de sub-texto expressivo que incorpora a memória e que garante que a mesma seja mecanismo eficaz na fundamentação da importância do mais velhos, ou seja ancestralidade e na tradição e renovação dos saberes intrisecos aos mais velhos.

La memória cultural como mecanismo creador no sólo es pancrónica, sino que se opone al tiempo. Conserva lo pretérito como algo que está. Desde el punto de vista de la memória como mecanismo que trabaja com tudo su grueso, el pretério no ha passado. (LOTMAN, 1996, p 159).


A ancestralidade presente, por exemplo, na valorização de referenciais que por ora chegam a ser mitizados e presentificados na espera pelo sinal de convite ao centro da roda de samba pela entidade, nos sambas religiosos, em gestos de reverencia aos mais velhos, a exemplo da pedida de benção, ou licença para jogar na roda de capoeira, e ainda, na citação dos mestres antigos e na contação de histórias sobre os feitos dos mesmos, podem ser identificadas como tradições que são renovadas com a força do passado.

O fluxo dessa informação, ancestralidade, e a forma como ela é ploriferada, não só transmite a informação, como atualiza e re-inventa tradições que servem para manter vivos os princípios destes textos. Nessas atualizações o que Lotman chama de dialetos da memória e/ou ainda as interpretações pessoais dessas tradições possibilitam que estas sejam transmitidas e a elas novos elementos sejam incorporados, renovando hábitos e costumes dessas práticas.

Essa dinâmica sendo atualizada, a que Lotman designou como dialeto da memória pode ser demonstrado no universo do samba de roda tomando como referência os grupos de apresentação, que ao se apresentarem como uma configuração recente e diferente das formas de sambas ligados a cultos religiosos ou comemorativos, atrelando distintos elementos em seu ambiente de contexto. Embora os grupos de apresentação realizem a roda de samba com a aparente hierarquia na disputa pelo centro da roda, essa hierarquia se apresenta apenas como “forma”, ou seja, a informação hierarquia é de certa forma esvaziada na transposição para a nova configuração, pois nesta não há uma entidade central comandando a roda, nem há realmente uma disputa pelo centro da roda, mas sua representação para fins de apresentação. Esses grupos utilizam ainda figurinos especialmente criados para tal, geralmente inspirados na figura do personagem da baiana de candomblé.

A fronteira é considerada como um mecanismo presente em todos os sistemas culturais, como um ambiente de alto grau de proliferação de textos híbridos em função de ser ela a responsável em desempenhar o contato intersticial entre os sistemas, sejam eles de caráter estável internamente ou não. É na região difusa de interpenetração da fronteira que as situações limítrofes geram ambientes catalisadores para a organização de novos sistemas de signos, ou seja, novos textos híbridos, cumprindo também a função de dupla tradução entre os sistemas em contato.

O trecho da música abaixo denota uma mesma mensagem que ganha diferentes semânticas por estarem contextualizadas em ambientes distintos, atreladas dessa forma a textos vizinhos (PINHEIRO, 2007) variados entre si, sem contanto induzir a idéia de pertencimento a um ou outro universo exclusivamente.

O marinheiro, marinheiro
Marinheiro só,
Quem te ensinou a nadar ?

Marinheiro só,
O foi o tombo do navio?
O foi o balanço do mar...

(Domínio Público)


No candomblé essa música é tocada nos sambas de Marujo, caracterizado como um samba ligado a culto religioso, essa entidade comanda a roda e é aludida ao Orixá Logum Edé. Para essa ocasião são preparados pratos típicos a base de frutos do mar, regados a muita cerveja e bebidas brancas, como champagne e vinho branco. Na capoeira ela aparece em situação de roda, ou seja, em jogo, cantada como um corrido , embora não seja necessariamente identificada pelos participantes como referência de seu cunho religioso.
Através da análise proposta de códigos e informações flutuantes, presentes tanto na cultura local de Salvador, como no Candomblé, no Samba de Roda e na Capoeira, podemos considerar que tais textos culturais são híbridos, indicando dessa forma em cada uma destas práticas grande grau de permeabilidade, diluindo dicotomias, gerando um caráter ambíguo e dinâmico, demonstrado na presença de uma ou mais informações simultaneamente nesses três textos. Dessa forma podemos afirmar que os engates ou relações dessas informações é que garantem em alguma instância a permanência e renovação desses textos.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

IURI M., Lotman. Semiotica de la Cultura y del Texto. Edición de Desiderio Navarro, Fronésis Cátedra Universidad de Valencia.,1996.

MACHADO, Irene. Liminalidad e intervalo: la semiosis de los espacios culturales. Signa [Publicaciones periódicas]: revista de la Asociación Española de Semiótica. Nº 10, Año 2001.

PINHEIRO, Amálio. Por Entre Mídias e Artes, a Cultura. In: SIGRID, Nora.(org.) HUMUS 2. Caxias do Sul: Lorigrf, 2007.

REGO, Waldeloir. Capoeira Angola. Ensaio sócio-etnográfico. Salvador-BA: Itapuã, 1968.

MOREIRA, Antonio. Canjiquinha: Alegria da Capoeira. Salvador: A rasteira, 1989.